Sexta, 26 Abril 2024

Trabalho comunitário reverteu estigmas e criou Território do Bem

Trabalho comunitário reverteu estigmas e criou Território do Bem

Coisas incríveis acontecem na cidade, mas quase ninguém vê. Estamos em Vitória. No Centro da cidade, moradores se unem para ouvir e aprender com a periferia. A Associação de Moradores do Centro (Amacentro) e outras entidades buscam construir um plano comunitário participativo e uma das principais inspirações não vem do exterior, mas ali de perto, do Território do Bem.


Hoje tanto a nível municipal como estadual, a região que abriga os bairros Itararé, Jaburu, Bairro da Penha, Bonfim, Engenharia, Consolação, Floresta, São Benedito, Gurigica, a chamada Poligonal I, agora é reconhecida como Território do Bem. Mas nem sempre foi assim, conta Denise Barbieri Biscotto, da ONG Ateliê de Ideias, que trabalha pelo fortalecimento comunitário. Chamado de Complexo da Penha, o local sempre figurou nos noticiários apenas na parte policial, estigmatizado como região violenta e perigosa. 




Foto: Leonardo Sá


“Tem muito tesouro dentro das periferias”, afirma. Mas por quê ninguém falava das coisas boas que aconteciam por lá? Uma série de iniciativas começou a mudar não só essa visão sobre os bairros, mas também a interação entre eles e o próprio entendimento dos moradores sobre o local que habitam. “A partir do Ateliê de Ideias, a gente conheceu nossa identidade periférica, porque até então não sabia onde morava. Eu sabia que morava no Morro de São Benedito, mas não sabia qual a identidade do Morro de São Benedito”, conta Valmir Rodrigues Dantas, líder comunitário e integrante da coordenação do Fórum Bem Maior, que reúne moradores de todos bairros e comunidades do Território do Bem.


A verdade é que há pouco mais de uma década, os moradores de um bairro raramente iam para outro da região, mesmo sendo vizinhos. Havia richa, medos e também desconhecimento. Assim como havia e ainda há carências, não só econômicas.


Entidades como o Ateliê de Ideias e o Serviço de Engajamento Comunitário (Secri) deram início, nos anos 2000, a projetos de economia solidária, já que os moradores tinham ideias e projetos, mas não possuíam crédito nem assistência técnica. Ainda não existia toda essa quantidade de empresas privadas de crédito focadas nas classes populares. Como a coisa estava funcionando, foi criado em 2005 o Banco Bem, com linhas de crédito produtivo, habitacional e de consumo, tudo decidido a partir da comunidade. Mesmo quem tivesse o nome “sujo” no SPC ou Serasa, podia ter acesso ao crédito, desde que os vizinhos atestassem a idoneidade da pessoa. “Quando o projeto nasce do desejo das pessoas, elas se envolvem. Se chega pronto, se vem de fora, a comunidade não acolhe”, diz Denise.


Com o banco e o acesso ao crédito para as comunidades do entorno, moradores dos diferentes bairros passaram a sentar-se à mesma mesma. Outro fator para quebrar as inimizades foram os canais de comunicação, sobretudo através da Varal, um ponto de cultura localizado na região, que produz jornal comunitário, programa de rádio, blog, banco de fotografias, criando também o imaginário de um território comum formado pela união dos bairros. Além disso, projetos buscaram resgatar a história dos bairros, ouvir os mais velhos, identificar os patrimônios materiais e imateriais do território. Sem memória não há identidade.




Foto: Facebook/ Ateliê de Ideias


Um momento importante nesse percurso se deu entre 2008 e 2009, com a elaboração de uma pesquisa sobre o Território do Bem, com um questionário construído pelos moradores e para os moradores, buscando um diagnóstico da região em vários aspectos de interesse da própria comunidade. “O processo foi mais interessante que o resultado”, constata Denise. Moradores de todos os bairros se uniram, discutiram e conseguiram aglutinar dados que ajudam a entender melhor o entorno. Dez anos depois, está sendo preparada uma nova pesquisa para atualizar dados.


Ao longo do tempo, com trabalho árduo e persistente, os processos comunitários se fortaleceram juntos. Cosme Santos de Jesus, uma das lideranças comunitárias do Jaburu, lembra do espanto de um secretário municipal quando ele chegou ao gabinete acompanhado de representantes dos diversos bairros: “Num era uma reunião sobre o Jaburu?”, questionou o secretário. Na verdade, percebendo a interconexão dentro do Território do Bem, o que afeta um bairro influencia em todos.



“Antes a gente só dialogava com assistente social”, lembra Cosme. Uma antiga prática da visão dos governantes sobre as periferias, vistas como formada por gente carente, que precisa de apoio, mas é incapaz de tomar decisões e discutir de igual para igual. Tinham então intercessores, que falavam por eles e mediavam os diálogos com os representantes institucionais. Agora, além de atuarem nos conselhos municipais e estaduais, os líderes comunitários conseguem canal direto com o poder público nas diferentes áreas, tendo conquistado escolas, unidades de saúde, praças nos morros.



Os comércios também se instalaram nos morros, contando com apoio das Centrais de Compras Coletivas, que organizam e capacitam os comerciantes em grupos de cooperação. Já não é mais preciso descer para baixada para qualquer necessidade. Isso muda a autoestima da população. 


No Fórum Bem Maior, não há presidente, mas uma coordenação formada por um ou dois líderes de cada bairro. As reuniões são mensais, sempre convocando todas as comunidades do Território do Bem. “Há pautas quentes, em que a reunião lota, e pautas frias, com menos gente. Quando a reunião é sobre lixo, por exemplo, poucos aparecem”, conta Valmir. Em pesquisas, o lixo é muitas vezes citado como problema maior do que a violência.




Valmir Rodrigues fala do Fórum Bem Maior a moradores do Centro de Vitória. Foto: Vitor Taveira


Mas nas reuniões, nenhuma questão discutida sai sem encaminhamento, conta Cosme. No Jaburu, por exemplo, um ponto viciado de lixo está sendo transformado em uma praça e uma horta comunitária, com apoio de moradores e pessoas de outros locais.


Num território de recursos financeiros escassos, pequenas quantias de dinheiro fazem muita diferença, assim como outras formas de ajuda comunitária, com tempo, trabalho, doações de materiais. Recentemente, o Fundo Bem Maior lançou um edital que selecionou 12 projetos comunitários para financiamentos com microdoações. Turismo, graffiti, salão de beleza e futebol estão entre os contemplados. 


Mas como foram 29 inscritos, está sendo preparada para dia 20 de outubro a Feijoada da Comunidade, beneficente, organizada pelos bairros de forma unificada, buscando arrecadar fundos para os projetos não contemplados.


É claro que ainda há muitos problemas e dificuldades nos territórios. Mas ocorrem revoluções invisíveis nessa cidade que não se conhece. O trabalho no Território do Bem recebeu em 2010, das mão do então presidente Lula, o Prêmio ODM, por contribuir para o cumprimento dos Objetivos do Milênio da Organização das Nações Unidas (ONU).


Cosme já saiu do Jaburu para dar palestras em várias cidades do Brasil e até na Colômbia. Mas por aqui não costuma falar para grandes plateias. Na conversa com os moradores do Centro de Vitória, diz que ele e os colegas mostraram apenas a ponta do iceberg. Há muitas coisas acontecendo. “Acho que talvez sejamos apenas uma sementinha”, diz o líder comunitário já calejado mas não cansado. Lembra de como tem ficado impressionado com a potência das construções das juventudes do Território do Bem.


Há muito mais por vir.

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